Parabéns ao andarilho, ao homem mendigo, ao pedinte contínuo que insiste em esmolar a vida, solicitar as sobras da tarde, resmungar um pouco ao acalanto do sol. Palmas para festejar meu dia. Passos para andar no mundo arrastando gente que emana alegria. Na minha vida encontrei trilhas demais. E parece que ainda não saí do ponto de partida.
O abridor de gavetas
Resolvi reler leituras antigas abandonadas nas prateleiras. Pensando nos sentidos expressos por aqueles contextos literários. Preparei logo junto um café expresso para alimentar a vontade das leituras insones. Devorei umas páginas inteiras intercaladas com bocejos de sono.
Entre os abrires de boca encontrei todas as cartas de um tempo ido. Minha memória saiu de bicicleta pela noite. Pedalei por todas as linhas, desci os morros das entrelinhas e percebi muita vida. Reli mais caminhos, adivinhei novos ares, busquei pelos mares, fui embora com o vento. Assentei na estação e percebi que o trem vai enquanto o trem vem.
Desconfiei, vendo a vida vivida, que minha memória só se projeta no por vir. Lembrar do que foi é ler livro, criar passagens entre as lacunas da lembrança que transformam tudo em filme, registro magistral da beleza encerrada. Fotografias em movimento, paredes pintadas com tintas desbotadas. Canções antigas respingando melancolia na visão da roda da bicicleta rodando, nas crianças correndo do pique-pega, do pique-esconde quietinho, na queimada no bairro e de volta a bicicleta caçando trilha de noite na roça.
No quintal de um andarilho tem um armário cheio de pegadas. Cada uma com assinatura de trecho, percurso, companhia, cheiros, sabores. É nas idas dos rumos que se faz a vida virar diário. As minhas pegadas, distribuí todas em compartimentos diversos. Quando quero procurá-las começo sempre pelas favoritas, guardadas na gaveta principal. Com puxador simples de madeira tosca. A gaveta do meu peito. Todo tesouro que tenho eu carrego comigo, dentro do peito.
